quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Vertigem

As velas iluminavam precariamente o aposento frio e sujo. As cortinas vermelhas balançavam mesmo que as janelas estivessem fechadas. Ouvia-se o barulho de pequenos animais rastejando pelo chão de mármore. A mesa de jantar estava posta e os Veneno estavam descendo para comer.
O senhor Veneno descia as escadas de sua enorme mansão segurando com elegância a mão de sua esposa. Os dois vestiam trajes de gala, como se estivessem prontos para um grande banquete com dezenas de convidados, apesar de serem os dois únicos comensais naquela noite. Era um costume deles estarem sempre muito bem vestidos, mesmo estando em casa.
Eu e minha mulher servíamos ao sinistro casal há muitas e muitas décadas. Sempre fomos leais a eles. Eram excelentes patrões, apesar de serem um tanto... diferentes. Ninguém visitava a grande mansão há anos. O casal e os empregados éramos os únicos a habitar aquela casa. Não tínhamos muitos afazeres. O Senhor Veneno passava o dia todo trancado na biblioteca, que servia-lhe também de escritório. A Senhora Veneno quase nunca saía de seu quarto na ala norte da mansão, mesmo à noite. O único horário em que víamos os dois era aquele: o jantar.
Naquela noite em particular, o casal agia de forma muito peculiar. Estavam com sorrisos estranhos de satisfação nos rostos, como se tivessem conseguido alguma vitória. Apesar de ser sempre muito silencioso e nunca se dirigir a nós, funcionários, na hora do jantar, o casal adentrou o salão e o Senhor Veneno anunciou, erguendo um braço:
- Boa noite, meus caros!
Olhei para minha esposa e Cícero, o cozinheiro, que estavam a meu lado, e respondemos juntos, inseguros e trêmulos:
- Boa noite, senhores.
O Senhor Veneno conduziu a esposa até a uma extremidade da mesa e puxou a cadeira para que esta se sentasse, indo tomar seu lugar na outra ponta. Ao colocar o guardanapo no pescoço com elegância, olhou pela janela e comentou:
- É realmente uma bela noite.
Olhamos para a escuridão que vinha da janela e pudemos notar que era noite de lua cheia. Algo estava começando a fazer sentido. Os Veneno, em um certo período de anos, assumiam um ar de contentamento inexplicável em noites de lua cheia. Esta parecia ser uma daquelas ocasiões. O Senhor Veneno tinha o costume de dispensar-nos nessas noites. De fato, minhas suspeitas foram confirmadas quando começamos a servir o casal e o Senhor Veneno interrompeu-nos, erguendo a mão e dizendo:
- Não, meus amigos. Esta noite não precisaremos dos seus serviços. É uma noite especial para os Veneno. Pedimos que nos deixem a sós.
Nunca soubemos o que uma noite de lua cheia a cada treze anos tinha de tão especial para que os patrões não aceitassem o jantar e ficarem sozinhos trancados naquele grande salão. Minha curiosidade era grande, mas minha lealdade era maior. 
É verdade que comentávamos sempre entre nós, os empregados, debatendo sobre o que poderia ser. Chegávamos a cogitar a possibilidade de os dois serem vampiros ou coisa do tipo. Afinal, conhecíamos o casal há décadas e nenhum dos dois parecia ter envelhecido um ano sequer. O efeito parecia surtir nos funcionários também. Se envelhecêramos, não sentíamos e não parecíamos mais velhos. Eu havia perdido a conta de quantos anos estivera trabalhando naquela mansão e ainda conservava o vigor da juventude. Minha mulher ainda era esbelta e atraente como na época em que eu a conhecera.
Os hábitos alimentares dos Veneno também levantavam suspeitas: gostavam de carnes malpassadas e não aceitavam tempero na comida. Na casa não havia um espelho sequer. Todos os objetos eram feitos de pedra ou vidro.
Os patrões eram muito generosos conosco; tínhamos tudo o que precisávamos para viver. mas não nos permitiam sair da propriedade. Estávamos confinados naquela mansão desde que fomos contratados, décadas atrás. Vivíamos para servir os Veneno, mas não os conhecíamos.
Naquela noite, decidi fazer o que nunca me atrevi a fazer: bisbilhotar. Não comuniquei a decisão a ninguém; poderiam tentar me impedir. Ora, o que podia acontecer? Não devia ser nada demais. Vampiros não existem, afinal. Havia um grande mistério envolvendo meus patrões, e eu precisava descobrir o que era.
Saí pelas grandes portas de carvalho da entrada da mansão e contornei as paredes até chegar às janelas do salão de jantar. Estava muito escuro, ninguém poderia me ver. Levantei a cabeça o mínimo que pude e avistei a cena mais improvável que eu poderia ter imaginado.
O Senhor Veneno estava beijando a esposa com muita ferocidade, dos lábios ao pescoço, depois para os ombros. Agarrava-a como se a violentasse. Ela parecia estar apreciando muito, não gritava e conservava uma expressão de gozo no rosto. Depois, o Senhor Veneno baixou o vestido da mulher, enquanto a arranhava deixando grandes marcas, e beijava e mordia-lhe o corpo todo. Aprumando a visão, pude notar que ele empunhava uma faca e cortava várias partes do corpo da Senhora Veneno, deixando que o sangue escorresse, para depois colhê-lo com uma taça de vidro.
O patrão deitou a mulher na mesa de granito e começou a rodeá-la, mexendo a boca, provavelmente proferindo palavras que eu não pude compreender. A Senhora Veneno se contorcia, mordendo os lábios e segurando os seios com uma mão e se masturbando com a outra. 
Meus pensamentos voavam. Eu entrei em completo delírio, consumido por uma vertigem. Meus patrões eram sadomasoquistas. Ou até mesmo coisa pior. Quando pude concentrar-me na cena novamente, notei que o Senhor Veneno posicionara-se de forma a ocultar minha visão. Quando finalmente mudou de posição, pude ver que a Senhora Veneno espumava pela boca e mantinha os olhos virados para cima. O marido virou o corpo da mulher, pegou então um ferro em brasa na lareira e começou a marcar suas costas. Depois, virou-a novamente, jogou vinho e colocou velas em torno de seu corpo. Sem aviso prévio, o Senhor Veneno ajoelhou-se em cima da mesa e a possuiu como uma fera estupradora. A esposa derrubou várias velas enquanto se contorcia, queimando-se em vários pontos e deixando graves feridas.
Eu queria sair dali o mais rápido possível, mas minhas pernas recusavam-se a se mexer. Mantive o olhar na cena macabra, procurando achar uma explicação lógica. Talvez meus patrões fossem adeptos a uma seita, ou talvez simplesmente gostassem do que estavam fazendo, mas isso não explicava os outros mistérios da mansão Veneno.
A Senhora Veneno começou a se contorcer ainda mais e as velas que iluminavam o salão se apagaram. Em algum lugar, pude ouvir um uivo. Um vento frio passou por meu corpo e eu perdi o equilíbrio. Quando recuperei-me da queda, ainda sentado, olhei para cima e o vulto do Senhor Veneno estava ali, com a taça de vidro contendo o sangue da esposa, bebendo um gole antes de falar:
- Ora, ora...
"Vou morrer", foi a única coisa que consegui pensar.
- Não, meu caro. Já morreu há muito tempo.

domingo, 19 de maio de 2013

Um fluxo de sangue para a cabeça

André acordou, ainda atordoado. Não se deu conta de onde estava, a princípio. Na realidade, ao olhar em volta, não reconheceu o lugar. Depois de alguns segundos consciente, sentiu a dor de estar pendurado pelos pulsos sem poder ficar de pé, pois estava acorrentado nas mãos e nos pés, com seus braços na posição vertical e suas pernas ligeiramente dobradas, sem forças para sustentar o peso do próprio corpo. Percebeu também que estava nu.
Estava em algum tipo de masmorra ou calabouço. Não era muito grande. Ele estava acorrentado bem no meio do cubículo, podendo ver somente o que estava à direita, à esquerda e à frente. Não havia janelas. A única iluminação vinha de quatro tochas distribuídas pelos quatro cantos do aposento. Havia também uma porta de madeira já muito gasta defronte a André. Notou uma mesa com vários instrumentos estranhos encostada na parede à esquerda. As paredes da sala eram de pedra, dando ao lugar um aspecto frio e sombrio. 
Alguns minutos depois, a porta se abriu. Dela entrou um homem vestindo uma roupa cirúrgica, uma máscara, luvas e um óculos de proteção. Suas mãos e seus pés estavam brancos e seus olhos ostentavam uma expressão séria, beirando a morbidez. Fechou a porta num gesto quase cerimonial e ficou parado ali com a mão na maçaneta. Ficou de cabeça baixa e não a levantou para olhar André quando este o chamou. 
- Ângelo...
A voz de André era suplicante, quase como um sussurro. Ângelo não se mexeu. Apenas disse, com voz firme:
- Tem certeza de que quer continuar com isso?
André não respondeu de imediato. Lembrou-se então de quem era, do que estava fazendo ali e que lugar era aquele. 

Agora eles estavam ali, prontos para terminar o que haviam começado. André havia quase morrido por exaustão umas três vezes. Achara, de fato, que não iria conseguir chegar ao fim daquilo, mas lá estavam eles. Reuniu todas as suas forças para dizer:
- Ângelo, por favor... eu não quero mais!
- Desculpe, André. Tenho uma promessa a cumprir - disse Ângelo, finalmente levantando a cabeça e soltando a mão da maçaneta.
Ângelo andou até a mesa com os instrumentos e começou a manuseá-los de costas para o amigo acorrentado. André o observava, suplicando:
- Ângelo, não! Eu já estou curado! Não é preciso ir até o fim!
- Você me disse que seria preciso ir até o fim, lembra-se? - respondeu Ângelo, sem se virar.
- Eu... mudei de ideia! Por favor, não vou aguentar!
- É para o seu bem - disse Ângelo, virando-se.
- O... o que é isso? - perguntou André, desesperado.
- Isso vai doer, André.

Ângelo pegara um quebra-nozes. Ergueu-o, como que o examinando meticulosamente, antes de olhar para a cabeça pendente de André. Hesitou por um segundo e lembrou-se da promessa feita. André pagaria caro quando tudo aquilo terminasse por ter feito ele fazer aquilo. Subiu num banco de madeira que tirara de trás de André e agarrou suas mãos e erguendo o indicador, quebrou-o com o quebra-nozes. André gritou novamente.
- Pare, por favor!
Sem responder, Ângelo ergueu o outro indicador e quebrou-o também. Outro grito. Fez isso com todos os dedos das mãos de André. A voz do amigo ia perdendo intensidade a cada grito. Ângelo achou que André deveria ter desmaiado logo quando começou, porém este aguentou cada segundo.
Em seguida, olhando para os olhos suplicantes do amigo, pegou um prego na mesa ao lado. Sem piedade, espetou vários pontos do corpo de André. O sangue escorria enquanto este gritava a cada furada.
- Vou morrer de hemorragia! - gritou André.
- Talvez.
- Pare!
Ângelo parou, mas porque já havia aberto furos suficientes. Virou-se para pegar outro instrumento. Enquanto o fazia, ouviu os gemidos e lamentos de André e sentiu pena. Até onde ele havia se disposto a chegar para superar outra dor...
- Ângelo, pare!
- Você vai conseguir.
Ângelo se virou e se dirigiu até André. Colocou-lhe um saco em sua cabeça, deixando-lhe impossibilitado de respirar. Bateu-lhe na barriga com um taco de golfe uma vez. André se contorceu até onde as correntes o permitiam, sem gritar. Ângelo lhe bateu nas costas. Mais uma contorção. Tirou o saco e André engoliu o ar com força.
- P... pare - disse ele, de cabeça baixa.
Ângelo cobriu-lhe a cabeça com o saco novamente. André tentou protestar com gritos, mas foi inútil. Mais batidas com o taco. Ângelo notou que os pulsos e os pés do amigo sangravam agora. Seria prudente soltá-lo? Decidiu que não. Liberou André do saco e pôs-se a preparar outro instrumento.
- Não! - disse André, fraco demais para gritar.
- Estamos quase acabando.
Com movimentos vagarosos, Ângelo pegou o que parecia ser um controle remoto com dois botões, um vermelho e um preto. Ligou dois fios de bateria de carro nos mamilos de André. Ainda muito devagar, apertou o botão vermelho. Nada aconteceu. Em seguida, girou lentamente o botão preto. Um choque leve no peito de André foi aumentando de intensidade à medida que Ângelo ia virando o botão. Ele urrava de dor.
Ângelo se perguntou se a dor que sentia por ver o amigo sofrer não se comparava de fato à que o amigo sentia. Era preciso mesmo fazer tudo aquilo? Girou o botão preto à posição inicial e apertou novamente o botão vermelho.
- Vai terminar agora - disse ele.
André estava pendurado, inerte. Já não gritava, não gemia. Não sentia mais nada. Desejava que tudo parasse. Foi quando Ângelo pegou uma seringa na mesa e virou-se para encarar o amigo.
- Está pronto?
André conseguiu apenas acenar com a cabeça.

Os olhos de André viraram para cima até que se via apenas a esclerótica. Sua boca abria-se até o limite, descontrolada. Todos os músculos de seu corpo se contraíam. A dor vinha de cada centímetro do seu corpo, enquanto o veneno circulava em suas veias e artérias. Enquanto urrava de dor e seus membros fugiam-lhe do controle, o peso de seu corpo inerte fazia doer ainda mais seus pulsos, que o sustentavam quase de joelhos. Um fluxo de sangue subiu para sua cabeça e ele cedeu. Em seu devaneio, lembrou-se da última conversa que tivera com Ângelo.

- Você me promete que fará tudo o que for preciso? - perguntara.
- André, eu não sei se é uma boa ideia... - dissera Ângelo.
- Você quer que isso tudo termine, não é? Eu preciso de você para me ajudar com isso. Só você pode fazer o que é preciso.
- Eu não gosto dessa ideia. Você é meu amigo. Não quero fazer isso com você. Você irá sofrer.
- Vou sofrer mais se não fizer. Por favor. Tem que me prometer que não irá parar em momento algum, se eu gritar ou pedir para que você pare, ou até mesmo pedir para que me mate - suplicara André.
- Tem certeza que vai dar certo? - perguntara Ângelo, parecendo ainda desconfiado e indeciso.
- Sei que vai ser uma dor inimaginável, mas no final tudo ficará bem melhor.
- E se algo de ruim acontecer?
- Teremos ao menos tentado nossa última alternativa.